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INTRODUÇÃO
O
presente trabalho é resultado de experiências vividas dentro e fora do ambiente
acadêmico e se apresenta na forma de Memorial, descrevendo minha história de
formação. Para isso, menciono alguns momentos importantes que me impulsionaram
e moldaram minhas escolhas e convicções.
Partilho
neste memorial quais foram as motivações que me levaram a cursar não somente os
cursos de Direito e Administração, mas também a buscar por uma Pós-Graduação em
Educação Especial, especificamente na área de ensino da Língua Brasileira de
Sinais –Libras.
No
memorial enfatizo que a inclusão não é apenas uma necessidade de se incluir,
mas é acima de tudo, uma necessidade de se incluir e conhecer as verdadeiras
dificuldades que segregam os indivíduos de uma sociedade, que começa a criar
novos contornos que confrontam com os velhos problemas sociais.
Entender
as dificuldades e os caminhos de construção de sua própria personalidade é
certamente saber como construir contornos mais definidos de luta em defesa do
autoconhecimento e inclusão.
Inicio
contando como se deu minha educação básica, evoluindo para a busca de respostas
e entendimento do que vinha a ser a minha realidade. Mostro por minhas
experiências ainda na juventude que entender as diferenças e encara-las da
forma correta te molda para ser um ser humano mais humano.
O ambiente da faculdade me ensinou novos
nomes e conceitos e fortaleceu as raízes que me firmavam o entendimento do que
vem a ser a realidade em um mundo onde tudo era apenas fantasia. Até que um dia
você descobre qual é a realidade por trás das velhas mascaras do preconceito e
exclusão.
Por fim concluo com meu desejo de ser este apenas o
começo desta longa jornada pela busca de direitos, conhecimento e inclusão, não
apenas como expectadora, mas como agente capaz de promover parte desta nova e
tão esperada realidade, o da sociedade inclusiva.
MINHA
HISTÓRIA DE VIDA
Como é nascer e se sentir diferente.
Todos têm uma maneira singular de ver e sentir o mundo, eu sempre senti que o
mundo era uma grande festa fantasia, onde muitas máscaras eram utilizadas e
você não conseguia ver verdadeiramente quem eram as pessoas. Foi assim que vivi
minha infância,
Eu comecei a ler antes de saber
escrever, sabe aquelas letrinhas mágicas que te contavam histórias de reinos
distantes, onde tudo era lindo e perfeito até que uma bruxa má aparecia para
deixar todo mundo infeliz.
Eu
sonhava com cada figura e sonhava com cada nova história me sentindo a gata
borralheira, a Cinderela ou a Rapunzel.
Quando fui ao jardim de infância por
volta de 1987, não conseguia entender porque as crianças choravam para fazer
suas atividades com cola e bolinhas de papel, eu ficava olhando e pensando o
porquê de coisas que eu considerava tão tolas provocarem o choro nelas.
Cresci mais e os problemas
continuaram sendo sempre os mesmos, eu observando meus coleguinhas chorarem por
problemas que eu considerava serem tão tolos. Eu nunca fui muito popular, nunca
fui a mais linda, mas sempre gostei de ir à escola, eu vivi momentos
maravilhosos na companhia daqueles livros, isso até o ano de 1994 quando entrei
para a quinta série.
Um pouco mais velha comecei a sentir
outras coisas em relação a escola isso em 1996, agora não era o choro que me
causava estranheza, agora eu me via no meio das disputas por poder e
popularidade, as mais lindas as mais ricas e assim vai.
Foi nesta fase que entraram as
dúvidas, foi aí que eu me perdi de mim. Esqueci que podia mais e comecei a
achar que ser diferente era o que fazia com que as pessoas gostassem menos de
mim. Bodin[2] fala sobre o direito de ter sua
personalidade, uma identidade ao afirmar que:
O
indivíduo tem direito de ser ele mesmo. A estrutura de seu pensamento deve ser
respeitada desde quando cada um tenha suas experiências pessoais, sua ideologia
e seu credo. Tem ele o direito de viver a vida que escolheu, em que a
personalidade tem proteção integral e o ser humano se torna um ser único.
Afirma-se que o direito à identidade pessoal pode ser analisado, sob as óticas
estática e dinâmica. A primeira diz respeito ao nome, à origem genética; já a
egunda refere-se a seu estilo individual e suas verdades biográficas. É aquilo
que o torna singular. É ser pai dos seus próprios atos. Portanto, a
identidade deve ser respeitada independentemente do aspecto social e condição
pessoal.
Essa fase também foi uma fase de
"talvez", talvez se eu fosse mais magra, talvez se eu fosse rica,
talvez se eu fosse branca, talvez se eu fosse homem, talvez se, talvez se. COPETTI
neste sentido assim leciona:
Ao
longo da história da humanidade, com raríssimas exceções, o exercício
monopolizado do poder, ainda hoje presente em muitas sociedades, foi e continua
sendo uma fonte inesgotável de vida qualitativa ruim, de infelicidade, em razão
do distanciamento das ações sociais efetivadas pelos ocupantes dos espaços de
poder[...]
Nesta fase descobri o que era
sexualidade, descobri o porquê de os meninos olharem as meninas, descobri o que
era realmente crescer, descobri, mas não entendi, pois estava muito ocupada
tentando entender meus próprios porquês.
Comecei então a passar de séries e
foi nesta época que comecei a perceber que eu realmente gostava de ser
diferente. Percebi que eu não gostava de ser tradicional, gostava de ser como
minha mãe, ou seja, diferente e forte.
A
concepção clássica de instinto tem como modelo um comportamento que se
caracteriza por sua finalidade fixa e pré-formada, com um objeto e objetivos
determinados, enquanto a noção freudiana de sexualidade defende a idéia de que
a sexualidade humana não é instintiva, pois o homem busca o prazer e a
satisfação através de diversas modalidades, baseadas em sua história individual
e ultrapassando as necessidades fisiológicas fundamentais. Assim, se a sexualidade
se inicia com anatomia (no nascimento), sua conquista depende de um longo
percurso durante a construção da subjetividade da criança.
Comecei a descobri meu amor por
números, adorava tirar as melhores notas, amava fazer meus planos de superdotada
e sonhava construindo grandes coisas apenas lendo meus livros de matemática.
Entre sonhos e brincadeiras ia
criando minha defesa contra o mundo, Vigotsky[4] ensina que "brincar é aprender, na brincadeira, reside à base daquilo que mais tarde
permitirá à criança aprendizagens mais elaboradas. O lúdico torna-se, assim,
uma proposta educacional para o enfrentamento das dificuldades no processo de
ensino na escola".
No ensino fundamental tive muitos
colegas, e um grande amigo que assim como eu era um pouco diferente dos outros
e não seguia a linha do tradicional. Eu só entendi a sua diferença quando
descobri que meninos também podem gostar de meninos.
Com meu amigo podia trocar livros e
viver nossas histórias de grandeza juntos sem precisar viver a capa do tradicional,
também experimentávamos o quão popular um diferente pode ser em dias de prova.
E gostava mais ainda de ver o rosto
de meus professores quando me entregavam as notas, era como um prêmio ao final
de uma jornada de estudos. Foi então que eu descobri a fórmula mágica para se
tirar notas boas.
Comecei
a estudar e ensinar meus colegas a estudar, estudava para dar aula aos meus
colegas e neste momento eu podia ser mestre, a sensação era ótima e eu sempre
conseguia aprender mais porque me dedicava a ensinar e com as perguntas e dúvidas
dos meus colegas eu sempre conseguia olhar mais atentamente a algo que não
tinha prestado atenção antes.
[...]
não há experiência sem conseqüências para o
agente que as realiza e para quem recebe os seus efeitos, que nada ocorre em
vão e que o acúmulo de experiência cria caminhos e bases, que são o germe da
estabilização de um tipo de prática educativa, como uma forma a mais da
consolidação da cultura. As ações passadas orientam as futuras, a prática dirige
o futuro – sendo feitas a partir da sabedoria acumulada e a partir dos erros e
dos acertos consolidados.
Assim entre aulas e aulas eu
terminei o segundo grau em 2001, cheia de planos e sonhando em ser professora
de física (porque era a matéria que eu mais me orgulhava de ter domínio).
Contudo, o trabalho e a
responsabilidade da idade adulta me roubaram alguns sonhos e com eles se
passaram alguns anos em que meus amigos livros ficaram empoeirados junto a
minha estante de livros.
Mas o gigante adormecido acorda e
vem com mais força e vontade. Foi com esse ânimo que entrei para a faculdade de
Administração no ano de 2008 na Faculdade do Pará - FAP, na Cidade de Belém.
Pode parecer tardio, mas, foi
somente nesta fase que descobri o verdadeiro significado da palavra
preconceito, ele sempre esteve presente por trás das velhas mascaras, mas só
agora eu entendia a força que existe por trás desta palavra tão marcante.
Descobri o peso de ser negra, de
gostar de amigos gays, de pensar de forma masculinizada, de ter padrões
diferentes de falar e pensar. Descobri que não gostava de ver separados do “todo”,
aquela parcela tratada como diferente, ou até mesmo anormal.
[...]
é uma luta, um movimento que tem por essência estar presente em todas as áreas
da vida humana, inclusive a educacional. Inclusão se refere, portanto, a todos
os esforços no sentido da garantia da participação máxima de qualquer cidadão
em qualquer arena da sociedade em que viva, à qual ele tem direito, e sobre a
qual ele tem deveres.
A religiosidade sempre presente nunca me fez
excluir ninguém, tão pouco deixar de gostar de todos, mesmo que distante por
causa de minha adorável fascinação por estar só em meu canto de observação.
Descobri meus próprios medos,
descobri meus segredos e me descobri hetero, pode até parecer estranho, mas,
foram muitos nomes novos que eu aprendi na faculdade. Foi ai também que troquei
administração por Direito no ano de 2009, passando agora a estudar na Faculdade
Integrada Brasil Amazônia - FIBRA, também na Cidade de Belém.
Não queria mais administrar números
e pessoas, agora eu queria brigar com todos aqueles que desrespeitavam os meus
direitos e os direitos daqueles que não eram tratados como iguais. Assim
comecei não somente uma faculdade nova, mas, também uma fase de muitas brigas e
muitos novos termos e colocações para as velhas máscaras.
Do
latim aequalitas, de aequalis (igual, semelhante), é indicativo da semelhança
de caracteres ou elementos componentes de duas coisas. Igualdade. É designação
dada ao princípio jurídico instituído constitucionalmente, em virtude do qual
todas as pessoas, sem distinção de sexo ou nacionalidade, de classe ou posição,
de religião ou de fortuna, têm perante a lei os mesmos direitos e as mesmas
obrigações. Mas, pela instituição do princípio, não dita o Direito uma
igualdade absoluta. A igualdade redunda na igual proteção a todos, na igualdade
das coisas que sejam iguais e na proscrição dos privilégios, isenções pessoais
e regalias de classe, que se mostrariam desigualdades.
A paixão pelo diferente veio de
minha mãe, que é e sempre será meu exemplo de força e superação, ela sempre foi
a frente de seu tempo, sempre forte e disposta a pagar o preço por suas
escolhas. Sobre o conceito de desigualdade social, segundo Camargo[8]:
[...]é um guarda-chuva que compreende diversos
tipos de desigualdades, desde desigualdade de oportunidade, resultado, até desigualdade
de escolaridade, de renda, de gênero, etc. De modo geral, a desigualdade
econômica – a mais conhecida – é chamada imprecisamente de desigualdade social,
dada pela distribuição desigual de renda. No Brasil, a desigualdade social tem
sido um cartão de visita para o mundo, pois é um dos países mais desiguais.
Segundo dados da ONU, em 2005 o Brasil era a 8º nação mais desigual do mundo. O
índice Gini, que mede a desigualdade de renda, divulgou em 2009 que a do Brasil
caiu de 0,58 para 0,52 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade), porém
está ainda é gritante.
A vontade de fugir do tradicional
era na verdade a vontade de ser forte e proteger os que eu sempre amei e que
nunca foram iguais ao tradicional. Daí veio a vontade de conhecer um pouco mais
sobre o que eram os denominados grupos de minorias.
Entre seminários e palestras eu
descobri que poderia ajudar mais se entendesse mais. Comecei a relembrar o
quanto é bom ensinar e o quão importante é ensinar o respeito aos direitos dos
outros. Assim terminei a faculdade com o desejo de querer saber mais e também
de ensinar esse mais para outras pessoas. Mantoan[9] trata deste momento da seguinte maneira:
[...]
não pode continuar ignorando o que acontece ao seu redor nem anulando e
marginalizando as diferenças nos processos pelo qual forma e instrui os alunos.
E muito menos desconhecer que aprender implica ser capaz de expressar, dos mais
variados, o que sabemos, implica representar o mundo a partir de nossas
origens, de nossos valores e sentimentos.
Neste momento quis ser não a
advogada, mas aquela “velha professora” capaz de te fazer querer ser mais sendo
apenas você. Agora quero ser professora, pensei eu, quero ser professora para
aqueles que eu considero iguais, mas que são tratados como desiguais.
Comecei a fazer uma pós-graduação em
Libras no ano de 2015. Essa foi a experiência mais incrível que tive, comecei
uma nova etapa, que me surpreendeu a cada momento, descobri que tão longe da
minha área de formação estaria uma paixão ainda da minha infância, a arte de
ensinar, agora criava novos contornos e ganhava nomes importantes como Edgar Morin.
Amei cada contexto de sua história e de seu currículo pessoal, descobri que
seus conhecimentos eram universais e, sua aplicação era tão interdisciplinar
quanto seu próprio pensamento. Segundo Morin[10]:
Considerando
a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em
todas as idades, o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das
mentalidades. Esta deve ser a obra para a educação do futuro.
A
compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é
daqui para a frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado
bárbaro de incompreensão.
Daí
decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas
modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque
enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo.
Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educação para a
paz, à qual estamos ligados por essência e vocação.
O contato inicial com pedagogos,
professores das mais diversas licenciaturas me fez conhecer outra linguagem,
longe do “juridiqêz”, e mais perto da arte mágica que é ensinar o português,
não tão simples assim e, usado apenas como referência para o principal, era
hora de começar a aprender a como ensinar a Língua Brasileira de Sinais -
LIBRAS.
Primeiro semestre vencido e a tão
dura separação, agora entra a fase de aperfeiçoar de entender o que eu
realmente fui fazer na academia, eu fui aprender a como ensinar jovens e
adultos surdos. Mas não da forma como eu achava que deveria, essa foi a hora de
tirar as minhas próprias máscaras.
Descobri que deveria ter novos olhos
e novos ouvidos, que teria que entender o que vem a ser cultura surda e quais
caminhos que eles traçaram até consegui o que eles têm hoje. O direito de ter
sua própria história, o direito de ter seus direitos, seu respeito e
valorização, reconhecimento e documentação de sua arte, seus contos, piadas,
romances e etc.
O termo inclusão ganhou novas formas
e agora também novos nomes. Pessoa com deficiência agora não era mais uma única
pessoa, ganhou rostos, ganhou complexidade e mais respeito e admiração por
minha parte. Agora eu começava a realmente entender o que vem a ser direitos
dessas pessoas, e minha causa agora parecia mais nobre e mais difícil, um novo
velho desafio.
Eis que o termo empatia agora é mais
entendível e também mais aplicável. O contato com o surdo me fez entender minha
própria deficiência, minha ignorância e o quão frágil podem ser nossas
afirmações de conhecimento. Esse primeiro momento de impotência perante a nova
cultura e linguagem, se mostra agora como um desejo incomensurável de saber
mais de conhecer e conviver mais.
Agora sei que não serei apenas a mão
que defende, posso também ser a mão que ensina e aqui começo a remontar o que
vem a ser esse novo perfil profissional.
A pós-graduação me fez evoluir o
pensamento e me abriu novas portas de atuação, agora além de advogada quero o
tão honroso titulo de professora. Quero não somente entender, mas quero ajudar a
esclarecer quais são aquelas velhas formas que eu dizia, eram apenas as minhas
fantasias, a verdadeira realidade se forma muito depois com o conhecimento de
mundo e com o conhecimento da própria realidade.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Encerro as
considerações sobre este memorial, tendo em vista que a proposta de fazer este
trabalho teve como objetivo mostrar quais aspectos de minha construção tanto
básica quanto acadêmica basilaram a escolha por uma Pós-Graduação em educação
especial.
Neste
sentido, percebo que as condutas e comportamentos humanos são frutos do
trabalho integrado de pais e professores. O ambiente escolar muito revela sobre
como se desdobram algumas escolhas de inclusão ou de segregação.
O
conceito de escola inclusiva foi por mim compreendida como o conjunto de ações
de toda a comunidade escolar, onde seus agentes compreendem o valor de cada ser
humano. A Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS me ensinou não somente uma
cultura nova, mas aspectos de minha própria personalidade, pois, me vez começar
a ver minhas próprias deficiências e, assim a partir da desconstrução de alguns
pré-conceitos eu pude construir novos conceitos.
Deixo
com este breve trabalho o desejo de que outras áreas do conhecimento se
interessem em conhecer o quão fantástico verdadeiramente é o mundo da educação,
não somente a “normal”, mas a educação inclusiva.
REFERÊNCIAS:
[1] Graduada em Direito. Pós-Graduando
em Libras. Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal. Professora.
[3] Zornig, 2008. p. 73.
[4] Vigoysky 1998, p. 168
[5] Sacristán 1999, p. 71
[7] SILVA Plácido e. Vocabulário jurídico. volume II D-I. Editora Forence. 1993
[8]
http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/classes-sociais.htm
[9] MANTOAN, 2003,
p.12