domingo, 23 de abril de 2017

Um memorial a educação inclusiva-LIBRAS!



 
E TUDO ERA APENAS FANTASIA

Alféia Maria Maciel[1]

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado de experiências vividas dentro e fora do ambiente acadêmico e se apresenta na forma de Memorial, descrevendo minha história de formação. Para isso, menciono alguns momentos importantes que me impulsionaram e moldaram minhas escolhas e convicções.
Partilho neste memorial quais foram as motivações que me levaram a cursar não somente os cursos de Direito e Administração, mas também a buscar por uma Pós-Graduação em Educação Especial, especificamente na área de ensino da Língua Brasileira de Sinais –Libras.
No memorial enfatizo que a inclusão não é apenas uma necessidade de se incluir, mas é acima de tudo, uma necessidade de se incluir e conhecer as verdadeiras dificuldades que segregam os indivíduos de uma sociedade, que começa a criar novos contornos que confrontam com os velhos problemas sociais.
Entender as dificuldades e os caminhos de construção de sua própria personalidade é certamente saber como construir contornos mais definidos de luta em defesa do autoconhecimento e inclusão.
Inicio contando como se deu minha educação básica, evoluindo para a busca de respostas e entendimento do que vinha a ser a minha realidade. Mostro por minhas experiências ainda na juventude que entender as diferenças e encara-las da forma correta te molda para ser um ser humano mais humano.
            O ambiente da faculdade me ensinou novos nomes e conceitos e fortaleceu as raízes que me firmavam o entendimento do que vem a ser a realidade em um mundo onde tudo era apenas fantasia. Até que um dia você descobre qual é a realidade por trás das velhas mascaras do preconceito e exclusão.
            Por fim concluo com meu desejo de ser este apenas o começo desta longa jornada pela busca de direitos, conhecimento e inclusão, não apenas como expectadora, mas como agente capaz de promover parte desta nova e tão esperada realidade, o da sociedade inclusiva.

MINHA HISTÓRIA DE VIDA

            Como é nascer e se sentir diferente. Todos têm uma maneira singular de ver e sentir o mundo, eu sempre senti que o mundo era uma grande festa fantasia, onde muitas máscaras eram utilizadas e você não conseguia ver verdadeiramente quem eram as pessoas. Foi assim que vivi minha infância,
            Eu comecei a ler antes de saber escrever, sabe aquelas letrinhas mágicas que te contavam histórias de reinos distantes, onde tudo era lindo e perfeito até que uma bruxa má aparecia para deixar todo mundo infeliz.
Eu sonhava com cada figura e sonhava com cada nova história me sentindo a gata borralheira, a Cinderela ou a Rapunzel.
            Quando fui ao jardim de infância por volta de 1987, não conseguia entender porque as crianças choravam para fazer suas atividades com cola e bolinhas de papel, eu ficava olhando e pensando o porquê de coisas que eu considerava tão tolas provocarem o choro nelas.
            Cresci mais e os problemas continuaram sendo sempre os mesmos, eu observando meus coleguinhas chorarem por problemas que eu considerava serem tão tolos. Eu nunca fui muito popular, nunca fui a mais linda, mas sempre gostei de ir à escola, eu vivi momentos maravilhosos na companhia daqueles livros, isso até o ano de 1994 quando entrei para a quinta série.
            Um pouco mais velha comecei a sentir outras coisas em relação a escola isso em 1996, agora não era o choro que me causava estranheza, agora eu me via no meio das disputas por poder e popularidade, as mais lindas as mais ricas e assim vai.
            Foi nesta fase que entraram as dúvidas, foi aí que eu me perdi de mim. Esqueci que podia mais e comecei a achar que ser diferente era o que fazia com que as pessoas gostassem menos de mim. Bodin[2] fala sobre o direito de ter sua personalidade, uma identidade ao afirmar que:

O indivíduo tem direito de ser ele mesmo. A estrutura de seu pensamento deve ser respeitada desde quando cada um tenha suas experiências pessoais, sua ideologia e seu credo. Tem ele o direito de viver a vida que escolheu, em que a personalidade tem proteção integral e o ser humano se torna um ser único. Afirma-se que o direito à identidade pessoal pode ser analisado, sob as óticas estática e dinâmica. A primeira diz respeito ao nome, à origem genética; já a egunda refere-se a seu estilo individual e suas verdades biográficas. É aquilo que o torna singular. É ser pai dos seus próprios atos. Portanto, a identidade deve ser respeitada independentemente do aspecto social e condição pessoal.
           
            Essa fase também foi uma fase de "talvez", talvez se eu fosse mais magra, talvez se eu fosse rica, talvez se eu fosse branca, talvez se eu fosse homem, talvez se, talvez se. COPETTI neste sentido assim leciona:

Ao longo da história da humanidade, com raríssimas exceções, o exercício monopolizado do poder, ainda hoje presente em muitas sociedades, foi e continua sendo uma fonte inesgotável de vida qualitativa ruim, de infelicidade, em razão do distanciamento das ações sociais efetivadas pelos ocupantes dos espaços de poder[...]

            Nesta fase descobri o que era sexualidade, descobri o porquê de os meninos olharem as meninas, descobri o que era realmente crescer, descobri, mas não entendi, pois estava muito ocupada tentando entender meus próprios porquês.
            Comecei então a passar de séries e foi nesta época que comecei a perceber que eu realmente gostava de ser diferente. Percebi que eu não gostava de ser tradicional, gostava de ser como minha mãe, ou seja, diferente e forte.
            Segundo ZORNIG[3]:

A concepção clássica de instinto tem como modelo um comportamento que se caracteriza por sua finalidade fixa e pré-formada, com um objeto e objetivos determinados, enquanto a noção freudiana de sexualidade defende a idéia de que a sexualidade humana não é instintiva, pois o homem busca o prazer e a satisfação através de diversas modalidades, baseadas em sua história individual e ultrapassando as necessidades fisiológicas fundamentais. Assim, se a sexualidade se inicia com anatomia (no nascimento), sua conquista depende de um longo percurso durante a construção da subjetividade da criança.
           
            Comecei a descobri meu amor por números, adorava tirar as melhores notas, amava fazer meus planos de superdotada e sonhava construindo grandes coisas apenas lendo meus livros de matemática.
            Entre sonhos e brincadeiras ia criando minha defesa contra o mundo, Vigotsky[4] ensina que "brincar é aprender, na brincadeira, reside à base daquilo que mais tarde permitirá à criança aprendizagens mais elaboradas. O lúdico torna-se, assim, uma proposta educacional para o enfrentamento das dificuldades no processo de ensino na escola". 
            No ensino fundamental tive muitos colegas, e um grande amigo que assim como eu era um pouco diferente dos outros e não seguia a linha do tradicional. Eu só entendi a sua diferença quando descobri que meninos também podem gostar de meninos.
            Com meu amigo podia trocar livros e viver nossas histórias de grandeza juntos sem precisar viver a capa do tradicional, também experimentávamos o quão popular um diferente pode ser em dias de prova.
            E gostava mais ainda de ver o rosto de meus professores quando me entregavam as notas, era como um prêmio ao final de uma jornada de estudos. Foi então que eu descobri a fórmula mágica para se tirar notas boas.
Comecei a estudar e ensinar meus colegas a estudar, estudava para dar aula aos meus colegas e neste momento eu podia ser mestre, a sensação era ótima e eu sempre conseguia aprender mais porque me dedicava a ensinar e com as perguntas e dúvidas dos meus colegas eu sempre conseguia olhar mais atentamente a algo que não tinha prestado atenção antes.
Sacristán[5] ensina que:

[...] não há experiência sem conseqüências para o agente que as realiza e para quem recebe os seus efeitos, que nada ocorre em vão e que o acúmulo de experiência cria caminhos e bases, que são o germe da estabilização de um tipo de prática educativa, como uma forma a mais da consolidação da cultura. As ações passadas orientam as futuras, a prática dirige o futuro – sendo feitas a partir da sabedoria acumulada e a partir dos erros e dos acertos consolidados.
           
            Assim entre aulas e aulas eu terminei o segundo grau em 2001, cheia de planos e sonhando em ser professora de física (porque era a matéria que eu mais me orgulhava de ter domínio).
            Contudo, o trabalho e a responsabilidade da idade adulta me roubaram alguns sonhos e com eles se passaram alguns anos em que meus amigos livros ficaram empoeirados junto a minha estante de livros.
            Mas o gigante adormecido acorda e vem com mais força e vontade. Foi com esse ânimo que entrei para a faculdade de Administração no ano de 2008 na Faculdade do Pará - FAP, na Cidade de Belém.
            Pode parecer tardio, mas, foi somente nesta fase que descobri o verdadeiro significado da palavra preconceito, ele sempre esteve presente por trás das velhas mascaras, mas só agora eu entendia a força que existe por trás desta palavra tão marcante.
            Descobri o peso de ser negra, de gostar de amigos gays, de pensar de forma masculinizada, de ter padrões diferentes de falar e pensar. Descobri que não gostava de ver separados do “todo”, aquela parcela tratada como diferente, ou até mesmo anormal.
            Santos , menciona[6] que a Inclusão:

[...] é uma luta, um movimento que tem por essência estar presente em todas as áreas da vida humana, inclusive a educacional. Inclusão se refere, portanto, a todos os esforços no sentido da garantia da participação máxima de qualquer cidadão em qualquer arena da sociedade em que viva, à qual ele tem direito, e sobre a qual ele tem deveres.

             A religiosidade sempre presente nunca me fez excluir ninguém, tão pouco deixar de gostar de todos, mesmo que distante por causa de minha adorável fascinação por estar só em meu canto de observação.
            Descobri meus próprios medos, descobri meus segredos e me descobri hetero, pode até parecer estranho, mas, foram muitos nomes novos que eu aprendi na faculdade. Foi ai também que troquei administração por Direito no ano de 2009, passando agora a estudar na Faculdade Integrada Brasil Amazônia - FIBRA, também na Cidade de Belém.
            Não queria mais administrar números e pessoas, agora eu queria brigar com todos aqueles que desrespeitavam os meus direitos e os direitos daqueles que não eram tratados como iguais. Assim comecei não somente uma faculdade nova, mas, também uma fase de muitas brigas e muitos novos termos e colocações para as velhas máscaras.
            Sobre o que vem a ser igualdade, extraio o conceito do vocabulário jurídico de Plácido e Silva[7]

Do latim aequalitas, de aequalis (igual, semelhante), é indicativo da semelhança de caracteres ou elementos componentes de duas coisas. Igualdade. É designação dada ao princípio jurídico instituído constitucionalmente, em virtude do qual todas as pessoas, sem distinção de sexo ou nacionalidade, de classe ou posição, de religião ou de fortuna, têm perante a lei os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Mas, pela instituição do princípio, não dita o Direito uma igualdade absoluta. A igualdade redunda na igual proteção a todos, na igualdade das coisas que sejam iguais e na proscrição dos privilégios, isenções pessoais e regalias de classe, que se mostrariam desigualdades.
           
            A paixão pelo diferente veio de minha mãe, que é e sempre será meu exemplo de força e superação, ela sempre foi a frente de seu tempo, sempre forte e disposta a pagar o preço por suas escolhas. Sobre o conceito de desigualdade social, segundo Camargo[8]:

 [...]é um guarda-chuva que compreende diversos tipos de desigualdades, desde desigualdade de oportunidade, resultado, até desigualdade de escolaridade, de renda, de gênero, etc. De modo geral, a desigualdade econômica – a mais conhecida – é chamada imprecisamente de desigualdade social, dada pela distribuição desigual de renda. No Brasil, a desigualdade social tem sido um cartão de visita para o mundo, pois é um dos países mais desiguais. Segundo dados da ONU, em 2005 o Brasil era a 8º nação mais desigual do mundo. O índice Gini, que mede a desigualdade de renda, divulgou em 2009 que a do Brasil caiu de 0,58 para 0,52 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade), porém está ainda é gritante.

            A vontade de fugir do tradicional era na verdade a vontade de ser forte e proteger os que eu sempre amei e que nunca foram iguais ao tradicional. Daí veio a vontade de conhecer um pouco mais sobre o que eram os denominados grupos de minorias.    
            Entre seminários e palestras eu descobri que poderia ajudar mais se entendesse mais. Comecei a relembrar o quanto é bom ensinar e o quão importante é ensinar o respeito aos direitos dos outros. Assim terminei a faculdade com o desejo de querer saber mais e também de ensinar esse mais para outras pessoas. Mantoan[9] trata deste momento da seguinte maneira:

[...] não pode continuar ignorando o que acontece ao seu redor nem anulando e marginalizando as diferenças nos processos pelo qual forma e instrui os alunos. E muito menos desconhecer que aprender implica ser capaz de expressar, dos mais variados, o que sabemos, implica representar o mundo a partir de nossas origens, de nossos valores e sentimentos.

            Neste momento quis ser não a advogada, mas aquela “velha professora” capaz de te fazer querer ser mais sendo apenas você. Agora quero ser professora, pensei eu, quero ser professora para aqueles que eu considero iguais, mas que são tratados como desiguais.
            Comecei a fazer uma pós-graduação em Libras no ano de 2015. Essa foi a experiência mais incrível que tive, comecei uma nova etapa, que me surpreendeu a cada momento, descobri que tão longe da minha área de formação estaria uma paixão ainda da minha infância, a arte de ensinar, agora criava novos contornos e ganhava nomes importantes como Edgar Morin. Amei cada contexto de sua história e de seu currículo pessoal, descobri que seus conhecimentos eram universais e, sua aplicação era tão interdisciplinar quanto seu próprio pensamento. Segundo Morin[10]:

Considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para a educação do futuro.
A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para a frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão.
Daí decorre a necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos ligados por essência e vocação.

            O contato inicial com pedagogos, professores das mais diversas licenciaturas me fez conhecer outra linguagem, longe do “juridiqêz”, e mais perto da arte mágica que é ensinar o português, não tão simples assim e, usado apenas como referência para o principal, era hora de começar a aprender a como ensinar a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS.
            Primeiro semestre vencido e a tão dura separação, agora entra a fase de aperfeiçoar de entender o que eu realmente fui fazer na academia, eu fui aprender a como ensinar jovens e adultos surdos. Mas não da forma como eu achava que deveria, essa foi a hora de tirar as minhas próprias máscaras.
            Descobri que deveria ter novos olhos e novos ouvidos, que teria que entender o que vem a ser cultura surda e quais caminhos que eles traçaram até consegui o que eles têm hoje. O direito de ter sua própria história, o direito de ter seus direitos, seu respeito e valorização, reconhecimento e documentação de sua arte, seus contos, piadas, romances e etc.
            O termo inclusão ganhou novas formas e agora também novos nomes. Pessoa com deficiência agora não era mais uma única pessoa, ganhou rostos, ganhou complexidade e mais respeito e admiração por minha parte. Agora eu começava a realmente entender o que vem a ser direitos dessas pessoas, e minha causa agora parecia mais nobre e mais difícil, um novo velho desafio.
            Eis que o termo empatia agora é mais entendível e também mais aplicável. O contato com o surdo me fez entender minha própria deficiência, minha ignorância e o quão frágil podem ser nossas afirmações de conhecimento. Esse primeiro momento de impotência perante a nova cultura e linguagem, se mostra agora como um desejo incomensurável de saber mais de conhecer e conviver mais.
            Agora sei que não serei apenas a mão que defende, posso também ser a mão que ensina e aqui começo a remontar o que vem a ser esse novo perfil profissional.
            A pós-graduação me fez evoluir o pensamento e me abriu novas portas de atuação, agora além de advogada quero o tão honroso titulo de professora. Quero não somente entender, mas quero ajudar a esclarecer quais são aquelas velhas formas que eu dizia, eram apenas as minhas fantasias, a verdadeira realidade se forma muito depois com o conhecimento de mundo e com o conhecimento da própria realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Encerro as considerações sobre este memorial, tendo em vista que a proposta de fazer este trabalho teve como objetivo mostrar quais aspectos de minha construção tanto básica quanto acadêmica basilaram a escolha por uma Pós-Graduação em educação especial.
            Neste sentido, percebo que as condutas e comportamentos humanos são frutos do trabalho integrado de pais e professores. O ambiente escolar muito revela sobre como se desdobram algumas escolhas de inclusão ou de segregação.
            O conceito de escola inclusiva foi por mim compreendida como o conjunto de ações de toda a comunidade escolar, onde seus agentes compreendem o valor de cada ser humano. A Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS me ensinou não somente uma cultura nova, mas aspectos de minha própria personalidade, pois, me vez começar a ver minhas próprias deficiências e, assim a partir da desconstrução de alguns pré-conceitos eu pude construir novos conceitos.
            Deixo com este breve trabalho o desejo de que outras áreas do conhecimento se interessem em conhecer o quão fantástico verdadeiramente é o mundo da educação, não somente a “normal”, mas a educação inclusiva.


REFERÊNCIAS:






[1] Graduada em Direito. Pós-Graduando em Libras. Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal. Professora.
[2] MARIA CELINA BODIN, 2000, p.48-74.
[3] Zornig, 2008. p. 73.
[4] Vigoysky 1998, p. 168
[5] Sacristán 1999, p. 71
[6] Santos, 2003, p.81.
[7] SILVA Plácido e. Vocabulário jurídico. volume II D-I. Editora Forence. 1993
[8] http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/classes-sociais.htm
[9] MANTOAN, 2003, p.12
[10] Os Sete Saberes Necessários À Educação Do Futuro. Ano  2002. p.17